Folha de São Paulo – Tendências/ Debates 6 de dezembro 2010
Revolução na Educação pública – Tendências /Debates
Sinceramente, não entendo por que mais pessoas não se sentem revoltadas diante das condições da educação pública neste país.
Somos uma nação em que cerca de 50% das crianças brasileiras da 5ª série são semianalfabetas. Dos 3,5 milhões de alunos que ingressam no ensino médio (antigo colegial), apenas 1,8 milhão se formam.
Como conseqüência, todos os anos nós jogamos milhões e milhões de adolescentes despreparados no mercado de trabalho, sem qualquer perspectiva de ascensão social e econômica.
Isso não lhe causa indignação?
Essas estatísticas refletem décadas -ou melhor, centenas de anos- de descaso com a educação. Nós, brasileiros, políticos e sociedade civil, simplesmente não priorizamos a educação.
Com isso, impedimos que o país melhore a sua desigualdade social, reduza a violência ou mesmo consiga sustentar uma taxa de crescimento mais estável.
As estatísticas recentes demonstram que o sistema não apresentou uma melhora significativa nos últimos anos. Nesse ritmo, jamais atingiremos o nível de educação dos países desenvolvidos em 2022, como propõe o governo.
Mesmo porque trata-se de uma meta móvel: até lá, os demais países terão avançado substancialmente mais. Precisamos de uma verdadeira revolução na educação pública brasileira.
Os Estados Unidos a fizeram em 1870, ou seja, há 140 anos! Em uma década, dobraram o investimento na educação pública e universalizaram o ensino. Em 1910, todas as crianças tinham acesso a uma escola de período semi-integral.
Outro exemplo conhecido é o da Coreia. Na década de 70, iniciaram uma verdadeira revolução na qualidade da educação pública. Com isso, saíram de um PIB per capita abaixo do brasileiro para um dos mais altos do mundo em menos de duas gerações.
O modelo mais recente é o chinês. Muito se fala nos investimentos em infraestrutura, mas pouco se divulga o enorme esforço educacional chinês, do ensino primário aos cursos de doutorado.
Mas o que podemos fazer?
Primeiro, conscientizar a população em geral para o verdadeiro desastre que é nossa educação pública. Apenas com o apoio da população poderemos cobrar da classe política as medidas revolucionárias (já amplamente conhecidas dos experts em educação) imprescindíveis para atacar de frente o problema.
Em segundo lugar, envolva-se pessoalmente. Educação pública é uma questão por demais relevante para se deixar apenas na mão do Estado. Há inúmeras ONGs de excelência que contribuem para a melhoria do quadro educacional brasileiro (por exemplo, o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Bradesco ou mesmo a nossa Parceiros da Educação, para nomear algumas). Participe delas, como voluntário ou mantenedor. Quanto mais envolvido com a realidade da educação pública, mais consciente você estará dos nossos desafios.
Precisamos de mais aliados nessa revolução!
*Jair Ribeiro é empresário, é co-coordenador da Associação Parceiros da Educação, ONG que promove a parceria entre escolas públicas e empresários. Site wwwparceirosdaeducacao.org.br
Ginásio Vocacional – uma escola para a vida
Eduardo Amos ex aluno turma de 64 Rio Claro Revista Arquivo Municipal de Rio Claro 2009
“Quando me perguntam o que aprendi no Vocacional, digo que aprendi a ler jornal, a comer com faca e garfo, a me seduzir pela realidade, a trabalhar em grupo, a me enxugar no meio das pernas depois do banho.” Essa frase do jornalista Aureliano Biancarelli, escrita 41 anos depois de se formar no Ginásio Vocacional de Americana, poderia, muito bem, ter sido escrita por algum aluno do Vocacional de Rio Claro. Essas poucas palavras dão a exata dimensão de como o projeto pedagógico de uma escola renovadora marcou definitivamente a vida de todos aqueles que por ela passaram.
Instalado precariamente no prédio do antigo Grupo Escolar da Vila Operária, hoje E. M. Monsenhor Martins, o Ginásio Vocacional de Rio Claro começou a funcionar em 1963. Em 1965, transferiu-se para um casarão no Horto Florestal onde funcionou por 3 anos. Finalmente, em fevereiro de 1968 mudou-se para as instalações definitivas construídas na rua 2 número 2877 onde ficou até a extinção do Ensino Vocacional em novembro de 1969.
O Vocacional, que tinha unidades instaladas em São Paulo, Americana, Barretos, Batatais e Rio Claro, era uma escola de período integral que tinha por pilares o trabalho em equipe, o estudo do meio e a participação ativa do aluno em seu processo de aprendizagem. Muito mais do que os conteúdos acadêmicos, ali se aprendia a olhar para a cidade, a entender o funcionamento das instituições e da sociedade, a buscar uma compreensão do mundo e, o mais importante de tudo: aprendia-se a conviver com pessoas de todas as classes sociais. Uma escola para todos
A seleção dos alunos levava em conta a composição da população da cidade em sua proporcionalidade de classes sociais para que a escola refletisse a maneira como a sociedade local se estruturava. Dessa maneira, a escola tinha a mesma composição social da sociedade rioclarense. Como as classes mais baixas representavam a maioria da população da cidade, esse segmento social tinha maior peso no momento da seleção. Isso provocou muitos protestos de parte das famílias da elite local que viam muitos dos seus filhos impedidos de estudar numa escola de ensino de alto nível. O depoimento da mãe de uma ex-aluna ilustra muito bem esse aspecto:
“Minha filha mais velha entrou na primeira turma, cuja origem social era de classe inferior. Os pobres eram maioria. O sistema era compreensivo e se preocupava em elevar os pobres. Estes não aceitavam nada que não fosse deliberado por eles. Foram ensinados a se organizarem e a defenderem seus interesses. Minha filha era ótima, mas não era aceita por ser filha de professora. Os pobres eram muito revoltados e minha filha sofreu. O Vocacional foi bom para ela no sentido intelectual, graças a ele, ela desenvolveu a capacidade de estudo e, de síntese, o que a levou a destacar-se no colegial do Batista Leme. No Vocacional ela não era ninguém, enquanto os pobres eram gente.” As instalações
As instalações, concebidas pelo arquiteto Pedro Torrano, pai de ex-aluno, formam o maior conjunto arquitetônico jamais construído no Brasil para abrigar uma escola de Ensino Fundamental I. A escola se espalhava por 10 blocos harmoniosamente distribuídos numa área de 3 quadras. Os prédios expressavam a proposta pedagógica da escola em que todas as disciplinas, atividades e projetos eram interligados. Além disso, a concepção daquele espaço escolar foi concebido de forma a colocar as atividades mais “barulhentas” (educação física e artes industriais) longe daquelas que exigiam maior concentração (português matemática, estudos sociais). Todos os blocos eram interligados por amplas passarelas cobertas e toda a área externa era ocupada por jardins construídos e mantidos pelos próprios alunos, os quais também cultivavam uma horta na disciplina de Práticas Agrícolas.
O espaço da escola era muito grande e não existia um pátio central, típico das escolas tradicionais, que permite que os alunos sejam permanentemente vigiados. Outro aspecto importante é que todas as portas permaneciam destrancadas durante as aulas e todos os alunos tinham acesso livre a todos os espaços.
Trabalho em equipe
Tudo no Vocacional era feito em equipe: desde o primeiro dia de aula quando um grupo de alunos mais velhos conduzia um grupo de recém chegados pelas dependências da escola até o recebimento do diploma na cerimônia de formatura.
Cada equipe, formada a partir da aplicação de um sociograma (técnica de formação de grupos a partir de escolhas feitas pelos próprios alunos), contava com um líder e um redator que mantinham seus cargos por um período determinado. Dessa forma, crianças provenientes das várias camadas sociais conviviam no dia a dia da escola e se ajudavam mutuamente. Era dentro das equipes que se realizava a construção do conhecimento, num processo muitas vezes conflituoso e que levava a um profundo aprendizado de convivência social.
O currículo
No Vocacional, o currículo contemplava não apenas objetivos de conhecimento, mas também objetivos comportamentais voltados para a formação de atitudes e da consciência crítica, o aprendizado da ética e a construção da cidadania no sentido mais amplo do termo. Enfim, a grande meta era o desenvolvimento integral do aluno. Para isso, além das disciplinas tradicionais como português, matemática, educação física e ciências, outras disciplinas, novas para todos nós, compunham o currículo: Estudos Sociais, Educação Musical, Artes Plásticas, Artes Industriais, Práticas Comerciais, e Práticas Agrícolas. Todas as áreas disciplinas trabalhavam de forma integrada em torno de Unidades Pedagógicas. Cada unidade começava com uma assembléia de todos os alunos de uma mesma série, a “aula plataforma”. Coordenados por Estudos-Sociais, as discussões realizadas na aula plataforma culminavam com a definição de um tema gerador a partir do qual todas as disciplinas trabalhavam ao longo de um bimestre. Ao final desse período, realizava-se uma nova assembléia (aula-síntese) em que as equipes compartilhavam tudo o que haviam pesquisado, estudado e aprendido. O conhecimento, portanto, era compartilhado com outros colegas e não apresentado ao professor numa prova escrita.
Um aspecto bastante renovador do currículo do Vocacional é que seu desenvolvimento se dava a partir da comunidade. É por isso que na 5ª série, o enfoque era a cidade (Rio Claro), na 6ª série trabalhavam-se temas relacionados ao estado de São Paulo, na sétima os temas falavam do Brasil e, finalmente, na 8ª série abordavam-se questões mundiais sem, contudo perder de vista seus impactos na comunidade.
Estudo do meio
Outro pilar do Ensino Vocacional, o estudo do meio fazia parte do cotidiano da escola. Sempre tinha alguma classe saindo para algum lugar, para estudar alguma coisa fora da escola.
Em 1965, por exemplo, quando, na 6ª série, estudávamos o ciclo do café no estado de São Paulo, realizamos dois estudos do meio. Um para conhecer o Museu do Café em Ribeirão Preto e a casa de Portinari em Brodósqui. O outro teve a duração de sete dias e nos levou a São Paulo e Santos. Na capital visitamos várias indústrias, uma agência de publicidade, a Estação da Luz e alguns museus. Em Santos conhecemos o porto por onde escoava toda a produção de café do Brasil e a Bolsa do Café. Mas o melhor de tudo é que para muitos de nós, foi a primeira vez que vimos o mar. Já na 8ª série, ao abordarmos a questão da unidade nacional brasileira, realizamos um estudo do meio ao Rio de Janeiro de 5 a 13 de novembro de 1967. Nessa viagem conhecemos o Forte Copacabana, Maracanã, Escola de Samba Vila Isabel, Favela da Catacumba, Vila Kennedy (primeiro conjunto habitacional brasileiro), o reator atômico da UERJ, aeroporto do Galeão, Museu de Arte Moderna, Monumento aos Pracinhas (obra de Niemeyer), o Itamarati, a Academia Brasileira de Letras, Jardim Botânico, Corcovado, Pão de Açucar, Ilha de Paquetá e Museu Imperial em Petrópolis. Numa tarde, uma das equipes foi recebida pelo escritor Ruben Braga em sua própria casa. Fazíamos nossas refeições no restaurante universitário chamado Calabouço, na Cinelândia. No ano seguinte, esse local seria palco do assassinato de um estudante que motivou a famosa Passeata dos 100 Mil. Na viagem de ida, dormimos uma noite no Parque Nacional de Itatiaia e na volta, visitamos a Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda e a Academia Militar de Agulhas Negras em Resende. Atividades como essa em que 50 alunos do Ensino Fundamental I de uma escola pública saem de sua cidade e passam uma semana ou 10 dias estudando e conhecendo o mundo são simplesmente inimagináveis nos dias de hoje. A bem da verdade, nem mesmo as melhores escolas particulares oferecem aos seus alunos experiências desse tipo hoje em dia. Contudo, incomensuráveis são os impactos na formação de uma criança de 13-14 anos ao vivenciar tudo o que viagens desse tipo podem oferecer.
Instituições didático-pedagógicas
Paralelo à estrutura curricular, mas perfeitamente integradas à comunidade escolar e ao projeto pedagógico, existiam as instituições didático-pedagógicas que visavam preparar para a vida do trabalho e propiciar a participação do aluno no ambiente da escola a partir de uma perspectiva diversa. As instituições didático-pedagógicas eram vinculadas à área de Práticas Comerciais e incluíam: a cantina escolar, a cooperativa escolar, o banco escolar e o escritório contábil.
Legenda da foto: Fac-simile de cheque do Banco Estudantil usado na cantina e na cooperativa da escola.
Uma história de lutas
A história dos Ginásios Vocacionais, desde o seu início, foi profundamente marcada por embates políticos tanto interna quanto externamente. O golpe militar de 64 que instaurou o mais longo período de ditadura no Brasil serviu como apoio para toda sorte de investidas contra o Ensino Vocacional, cuja implantação só foi possível graças à luta empreendida por professores, diretores, planejadores, pais, alunos e simpatizantes. A manutenção desse ensino tão revolucionário, por sua vez, não foi menos penosa já que, além de sofrer pressões vindas de instâncias superiores como a Secretaria de Educação, a escola ainda tinha que lidar com o jogo do poder local que, na maioria das vezes, não era favorável àquele projeto educacional.
O processo de desfiguração do projeto do Vocacional culminou com a invasão policial-militar ocorrida em todas as escolas da rede no dia 12 de dezembro de 1969. As escolas e a sede do Serviço de Ensino Vocacional foram invadidas por agentes da Policial Federal e por militares de Campinas. Em todas as unidades foram detidos professores, funcionários, alunos e qualquer pessoa que se encontrasse no recinto por até oito horas. Todos os setores foram vasculhados e os agentes policiais retiraram livros das bibliotecas, textos de estudo, relatórios e grande quantidade de material didático.
Finalmente, em 5 de junho de 1970 o Decreto no 52.460 oficializou a extinção de todos os Ginásios Vocacionais bem como de toda a estrutura do Serviço de Ensino Vocacional. As escolas do sistema Vocacional passaram a integrar a rede comum de ensino. Os alunos já matriculados passariam a cursar as escolas comuns em regime didático especial até a conclusão do curso e os alunos que ingressassem a partir de 1971 passariam a ter o currículo comum a todas as escolas. O Vocacional já era coisa do passado.
Uma chama que nunca morre
Hoje, depois de 41 anos, os ex-alunos do Vocacional ainda estão unidos. Desta vez, em torno da GVive, uma associação que congrega ex alunos, professores, pais e simpatizantes e que tem por objetivo resgatar e preservar a memória dos Vocacionais.
O site da GVive ( www.gvive.org ) oferece uma série de informações sobre os Ginásio Vocacionais e ajuda a promover encontros de ex-alunos e ex-professores.