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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Experiências em Educação E.E.S. Prof. Ayres de Moura no Est. de São Paulo

                                                                                                                               Tese de Mestrado  


No início dos anos 1980, em meio ao efervescente contexto político-social nacional, um grupo de professores e alunos da E.E.S.G. Professor Ayres de Moura, localizada na Vila Jaguara, Lapa, zona oeste da capital paulista, iniciou um movimento que culminou no afastamento do diretor e na apropriação daquele espaço pela comunidade escolar, propiciando condições para práticas didático-pedagógicas arrojadas que ocorreram por aproximadamente dez anos, entre 1984 e 1994.
O presente estudo pretende analisar a extensão dessas práticas e seus limites - que subsistem e reclamam para si o direito à memória -, deixando registrado um exemplo alternativo no campo da Educação ocorrido na década de 1980, questionando, dessa forma, o binômio "escola pública/má qualidade". A análise do processo de auto-gestão instaurado naquela escola busca também refletir acerca da participação direta e efetiva nas decisões dentro do espaço escolar, do significado de participação política, democracia e cidadania, assim como nas relações de poder existentes no cotidiano. Especificamente no tocante às questões didático-pedagógicas, procura entender como o currículo real dessa escola foi trabalhado ao longo desses dez anos em que ela foi gerida pela comunidade. Em outras palavras, procura entender a dinâmica existente entre as esferas política e pedagógica. Para tanto, utilizou como fontes entrevistas com ex-professores e ex-alunos, artigos de jornais e documentos de natureza diversa produzidos pela escola. Atualmente, a E.E.S.G. Professor Ayres de Moura não difere da média das escolas públicas da periferia da cidade de São Paulo, pouco se assemelhando ao que foi durante o período referido por essa pesquisa. Nesse sentido, também se buscou compreender as razões que levaram aquela experiência ao seu esgotamento.

Carlos Eduardo Riqueti[i]
carloseriqueti@usp.br

Conto de escola

Até o início da década de 1980, a EESG Prof. Ayres de Moura – localizada na Vila Jaguara, zona oeste da Capital –, não apresentava nenhuma diferença significativa em relação às demais escolas públicas da cidade de São Paulo no tocante à rígida disciplina e à ênfase na transmissão de conteúdos selecionados segundo os critérios individuais de cada professor. O dia a dia da escola era gerido pelos zelosos e autoritários cuidados da assistente de direção que era, no final das contas, a pessoa quem realmente respondia e dava a palavra final.
Depoimentos obtidos durante a elaboração da dissertação de mestrado que originou esse texto[1] mostraram que o compromisso da assistente de direção era inquestionável. Sua prática, entretanto, era pautada no entendimento pessoal acerca do que deveria ser uma boa escola. A EESG Prof. Ayres de Moura tinha um “dono”.
O ingresso paulatino de novos professores a partir de 1978 iniciou um processo cujo resultado é a formação, dentro do corpo docente da escola, de um novo grupo, ou subgrupo. O reconhecimento e a identificação de posturas e práticas – políticas e pedagógicas – fizeram que alguns deles se aproximassem ao mesmo tempo em que outros se afastavam.
O efervescente contexto histórico do momento e também as mudanças ocorridas especificamente do cenário da educação paulista marcaram o cotidiano do Ayres de Moura[2]. Dois fatos são aqui selecionados: a) o afastamento da vice-diretora que, a convite da PMDB, com a eleição de Franco Montoro para governador do estado em 1982, transfere-se para a Secretaria de Esportes e b) a discussão do Documento Preliminar para Reorientação das Atividades da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo[3] que culminou com o primeiro congresso ocorrido na escola.
No sentido de imprimir o teor democrático da gestão peemedebista, a Secretaria de Educação lançou o referido documento, elaborado por José Mário Pires Azanha, então chefe de gabinete do secretário de educação Paulo de Tarso Santos e professor da Faculdade de Educação da USP. Em linhas gerais, o documento, ao tecer um panorama dos problemas pelos quais a educação passava, suscitava uma discussão formal e oficialmente constante do calendário escolar, agendada para o dia 19 de maio de 1983, por meio da Resolução 118 do Diário Oficial, que, fazendo parte do calendário das escolas, deveriam resultar em levantamento de propostas a serem encaminhadas de volta à secretaria. Em outras palavras, a idéia era ouvir a escolas, a partir do professor.

Os alienistas

No Ayres de Moura, as aulas foram paralisadas no dia determinado, para que aquele documento fosse discutido. Naquela reunião, alguns professores, aproveitando a circunstância, lançaram a proposta de um congresso, no qual não apenas professores e direção, mas também alunos e funcionários discutiriam os problemas referentes à educação em geral, e aqueles que o Ayres de Moura vivia de modo específico. A tônica era “a escola que se tinha e a escola que se queria”.
A despeito dos conflitos e divergências, a proposta foi aprovada e, formalmente definida a realização do congresso, restava ainda, a questão de como viabilizá-lo de fato. Boicotes e pressões contrárias foram constantes. Os professores envolvidos com o congresso, entretanto, decidiram sensibilizar os alunos à participação por meio da leitura e discussão de textos, alguns extraídos de artigos de jornais e trechos de livros, outros produzidos pelos próprios professores e alunos, além de cartazes e discussões promovidas pelo grêmio estudantil. Muito da organização do congresso também contou com a participação dos alunos. Nos dias 29 e 30 de junho e 01 de julho de 1983, aconteceu assim, o I Congresso do GEPAM[4], com a participação maciça dos alunos, dos funcionários, e pela maioria dos professores.
Resumidamente, pode-se afirmar que o primeiro dia do congresso consistiu – após um período de aproximadamente um mês de sensibilização –, num levantamento daquilo que os alunos percebiam como problemas, das mais diversas ordens: pedagógicas, administrativas, entre outras. Por organização do Grêmio e de alguns professores, as discussões ocorreram nas salas de aulas. Entretanto, foi garantido que cada grupo fosse composto por alunos do 1º, 2º e 3º anos (do antigo segundo grau). A presença dos professores nas salas foi facultativa.
Nos dois dias subsequentes, as questões levantadas pelos alunos foram sistematizadas e transformadas em pontos para discussão e voto. É importante lembrar que não houve durante o processo de votação nenhum tipo de representação, tampouco de diferenciação entre alunos, professores ou funcionários. Após a discussão de cada item da pauta, o voto direto de cada participante era considerado: na hora da decisão, o que contava era o número de braços levantados.
As deliberações do congresso foram transformadas em um regimento interno que, a partir daquela data e independentemente da oposição da direção, passou a vigorar como base de orientações.
O vácuo de poder deixado com a saída da assistente de direção, a inabilidade e descompromisso da direção da escola e o fraco apoio de uma minoria de professores contrários ao processo que ocorria na escola – tudo isso somado à crescente organização do grupo oposto, reforçado ainda mais após o congresso, acabou por acirrar os ânimos e um clima de conflito aberto tomava conta da escola. Haja vista que o primeiro item – Direção – constante da página 4 do documento resultante do congresso especificava: “a) Encaminhamento do afastamento do diretor da escola junto aos órgãos competentes [proposta aprovada na plenária do período da manhã]; b) Presença constante do diretor na escola procurando maior integração entre direção e alunos e encaminhando soluções para os problemas da escola [proposta aprovada na plenária do período noturno].
Com a deterioração crescente da relação entre a direção e parte do corpo docente, o ano letivo de 1984 inicia-se num clima de caos dentro da escola. Três professores acusados pela direção de liderarem o movimento que ocorria na escola foram suspensos, sob a alegação de manipularem os alunos. Esses, por sua vez, organizaram uma mobilização contra a direção: não entravam em aula, permanecendo na escola, organizando protestos e atos contra o corpo diretivo. A fala de um dos professores entrevistados ilustra bem esse episódio:

...era uma preocupação. Claro, há pessoas preocupadas em não manipular, e outras não estão ligando muito, existem diferenças. Mas entre esse grupo fortemente atuante de professores, havia um sentimento de levar propostas, de discutir e principalmente de ouvir os alunos. Mesmo porque a gente aprendeu que o aluno às vezes sabe mais que a gente. Depois, quando nós fomos suspensos, os alunos trabalharam sozinhos, tinham aprendido. Foram aprendendo-fazendo. Isso foi uma das coisas mais lindas na minha vida, quando eu vi que funcionava: “eu não sou mais necessário nesse sentido, as pessoas estão andando por si.” Mas era tudo, muito pedagógico. Aprendizado. Nós éramos professores de fazer aquilo: de fazer assembléia, de exigir direitos, de argumentar, de reivindicar, de participar de uma forma organizada. Então éramos professor disso também, de cidadania! [...] A gente foi chamado prá depor, cada um num dia. Eles faziam perguntas prá gente se enrolar, que era prá voltar o processo contra nós. Mas aquela reação [dos alunos] a nosso favor e contra o “seu D.” [diretor da escola], deu toda a diferença. A atitude dos alunos deu um baque naquela gente [da Delegacia de Ensino]. Então, eu lembro que a sindicância mudou.

Em maio daquele ano, após investigações ocorridas na escola por meio de uma sindicância solicitada pelos professores à 1ª Delegacia de Ensino, houve o afastamento do diretor e coube ao Conselho de Escola escolher um diretor substituto. Foi apresentada uma chapa de candidatas ao cargo de diretora e assistente de direção, que sendo submetida aos alunos em plebiscito, foi aprovada com 94% dos votos. Mais uma vez, um dos professores que participaram daquele momento comenta em detalhes o processo da eleição do novo corpo diretivo:

Naquela época, todos os professores faziam parte do conselho, não tinha eleição e a escola estava reduzida pela situação. Tinha menos alunos, menos professores, foi um momento, inclusive, em que muitos deixaram a escola. A “A.C.” foi eleita como diretora pelo Conselho de Escola, que era formado por uns trinta e poucos professores, dois alunos votantes e dois observadores. Foram escolhidos alunos representantes da manhã e da noite, nós usamos a lei. Como os alunos tinham pouca representação, nós assumimos essa chapa [Profa. “A.C.” para diretora e Profa. “M.” para assistente]. Várias vezes aconteceu isso, de a gente assumir o que os alunos decidissem. A maioria se comprometia a fazer. Houve referendos no GEPAM. Então, essa chapa, articulada pela maioria dos professores e pela maioria dos alunos, foi referendada e foi prá conselho, como proposta, na verdade. E para que ficasse bem sacramentado, houve um plebiscito na escola. Houve uma votação maciça na chapa, e os únicos que votaram contra, foi uma classe inteira, que haviam combinado, porque não queriam perder a “M.” como professora.

O exemplo acima ilustra como o coletivo do “Ayres de Moura”, por meio de estratégias, conseguia garantir um espaço onde o poder de decisão ficava assegurado a todos aqueles que quisessem dele tomar parte, a despeito das condições dadas e de impedimentos legais. As professoras eleitas, porta-vozes do coletivo da escola que havia se apropriado daquele espaço, propiciaram condições para práticas didático-pedagógicas arrojadas – desde a implantação de salas-ambiente até a participação de alunos com direito a voto nos conselhos de classe, a cada bimestre –, que ocorreram na escola por aproximadamente dez anos.
Procurando fugir de qualquer idealismo, é importante lembrar que a experiência do Ayres de Moura, mesmo no auge da autogestão, não foi perfeita, mas possível. Os depoimentos mostraram que havia inúmeros problemas como qualquer outra escola – seja ela pública ou privada. Mesmo assim, citando alguns exemplos práticos, temas como ecologia, cidadania e conservação do patrimônio público, tão caros aos discursos do momento atual, já eram trabalhados na escola em meados dos anos 1980 e de maneiras bastante diversificadas e alternativas. Se isso pôde acontecer na escola, naquele momento, suas razões estão assentadas nas transformações de cunho político, indissociáveis das de natureza pedagógica. Mesmo considerando os limites e obstáculos, o coletivo do Ayres de Moura soube aproveitar as circunstâncias do momento e transformar a escola, tanto quanto isso fosse possível.

Memorial de “Ayres”...

Atualmente, a escola Ayres de Moura em nada se parece com aquilo que foi entre os anos de 1984 e 1994, aproximadamente. Compreender como a escola pouco a pouco perdeu suas conquistas, ao longo da década de 1990, implica considerar uma série de fatores internos e de contextos mais amplos.
A saída da diretora eleita, por motivo de aposentadoria foi um dado que desestruturou a escola, mencionado na totalidade das entrevistas, sem exceção. Além disso, a estrutura de funcionamento criada pelo coletivo do Ayres de Moura dentro da escola demandava muito do professor e, mediante as inúmeras mudanças ocorridas dentro e fora da escola, tornava-se cada vez mais difícil a sua manutenção. Mesmo assim, o final daquela experiência está longe de ter sido algo “natural”: o crescente abandono da escola pública, a inviabilização do magistério enquanto carreira profissional, a desqualificação crescente dos professores, o recrudescimento dos avanços conquistados a partir da abertura política em meados da década de 1980 são alguns dos aspectos que atestam as ofensivas, a perda, de certa forma, das conquistas, das possibilidades de mudança que por um determinado momento acenaram no horizonte do contexto político-social maior.

Eu acho que é uma época de pós-Collor, sabe? Aí você tem governadores, figuras como o Quércia, o Fleury, um governo ruim atrás do outro. Depois, quando veio o Covas, que era um cara que a gente esperava uma melhoria, o que aconteceu foi fechamento de escolas, atitudes totalmente autoritárias, politicamente. Quer dizer, nunca houve plano prá educação, nunca houve nada sério. Cada um fazia o seu grande plano mirabolante de educação, aquela coisa, você faz CEFAM, você faz Escola-Padrão, quer dizer, custava caro e eram todas, na verdade, atitudes demagógicas.

A grande rotatividade de professores dificultava aos novos ingressantes a absorção da proposta da escola. Além disso, os professores mais antigos, lideranças desde o início do processo, vão deixando a escola, por motivo de aposentadoria ou por falta de perspectivas. Por inúmeras razões, o coletivo da escola passa a ser apenas um grupo de pessoas, sem identidade ou sentimento de pertencimento:

Eu acho que as coisas são feitas por pessoas. Depende muito da qualidade dessas pessoas. [...] Sabe aquela coisa de formação, de caráter, de empenho, de comprometimento? Aquela pessoa que é o cidadão? Ela pode estar em qualquer emprego, [...] mas ela faz as coisas bem feitas. E eu acho que houve pessoas que se empenharam. Depois [ao longo dos anos] também iam entrando pessoas comprometidas, mas se ganhava mal, havia mais possibilidades fora [da escola pública]. Então, muitos jovens [professores] bons – eu lembro de uma série de pessoas boas que foram saindo. Eles tinham consistência, inteligência, boa formação, tudo, mas a escola já não oferecia mais... não havia mais perspectiva enquanto carreira. Eles viam os professores mais antigos – eu mesmo – um professor há tanto tempo e ganhando pouco, levando uma vida... sabe, você não pode exigir que a pessoa queira isso. E aí vão ficando na escola pessoas muito mal preparadas, mal formadas, que não entendiam aquilo tudo, nem o próprio comprometimento da gente. Tinha gente que pensava que nós éramos loucos, outros tinham ciúmes, inveja.

O ingresso de professores qualificados e comprometidos, que entendessem a proposta, conforme já mencionado no depoimento acima, não impediu o esgotamento do projeto. Vários desses professores, inclusive, mencionaram que se desligavam da escola contra a vontade. Quanto ao ingresso de professores mal preparados, intelectual e politicamente, – que ao longo dos anos 1990, passam a compor o grupo dos “novos” dentro da escola –, também entravam em choque com os “velhos”, intensificando ainda mais as dificuldades que a escola enfrentava.
Assim, por meio de um longo processo – e já sem a necessidade de todo o aparato repressivo da ditadura militar –, que adentrou os anos 1990, as inúmeras investidas contra a educação no peculiar processo de redemocratização do país acabaram fazendo com que a E.E.S.G. Prof. Ayres de Moura, que desde o início da década de 1980 havia se tornado uma escola pública de fato, de todos, da comunidade, voltasse a ser, não sem resistências, uma escola “do Estado”, de ninguém.
Ao vencedor, as batatas...



[1] Uma experiência de autogestão de professores e alunos da E.E.S.G. Prof. Ayres de Moura 1984 a 1994. 2008. 91 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.  Trabalho disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-05082008-165509/DissertacaoCarlosEduardoRiqueti.pdf

[2] Frente aos limites dados, não será discutida aqui a complexidade do processo que compreendeu o final da ditadura militar do Brasil e a abertura política. Destaca-se apenas o movimento da anistia no final da década de 1970, a reestruturação do movimento sindical dos professores e a entrada, a partir de 1978, de professores efetivos na rede estadual de ensino em caráter de professores efetivos, muitos deles com histórico de militância política que remonta o final da década de 1960.

[3] No cotidiano das escolas, ao longo de toda a rede de ensino, esse documento ficou conhecido simplesmente como “Documento Número 1”.
[4] Nome pelo qual até hoje a escola é conhecida entre os alunos e moradores do bairro, e que faz menção ao seu antigo e primeiro nome, Grupo Escolar Professor Ayres de Moura.


[i] Carlos Eduardo Riqueti é doutorando em História da Educação pela Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da Profa. Dra. Cecília Hanna Mate, onde atualmente pesquisa sobre o Colégio de Aplicação da USP.
 
 

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