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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

1996 - Florestan não teve medo da Liberdade! - Revista Adusp - maio

FLORESTAN NÃO TEVE MEDO DA LIBERDADE!

Maria Nilde Mascellani é professora do Departamento
de Psicologia Social da PUC/SP.

Cassada pelo AI-5 quando era Coordenadora do Serviço do Ensino Vocacional
da Secretaria Estadual da Educação, a professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade de São Paulo, Maria Nilde Mascellani, relata neste texto/depoimento a importância do professor Florestan Fernandes na sua formação. Aluna e mais tarde companheira de trabalho de Florestan no Renov (Relações Educacionais e do Trabalho), Maria Nilde enfatiza
a coerência do mestre na postura pessoal, na política e enquanto docente.
Ela relembra, ainda, o período em que Florestan optou por não retornar à USP, após a Lei da Anistia. “Infelizmente, a competição acadêmica e alguns guetos ideológicos trataram de afastá-lo definitivamente”.

Conheci o professor Florestan Fernandes em 1949,  quando ingressei no curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Naquele tempo os cursos de Filosofia,  Ciências Sociais, Letras, Pedagogia, História, Geografia e Matemática funcionavam no segundo andar do prédio que à época era a sede do Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República. Na década de 70, a chamada Casa de Caetano de Campos se tornou o principal edifício da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. O Instituto, como toda a educação pública brasileira, a partir desse período fragmentou-se até perder os últimos resíduos da boa qualidade de ensino de que fora padrão.
Pois bem, aluna do 1° ano de Pedagogia, com dezoito anos incompletos, iniciei meus primeiros passos
no campo das Ciências Sociais; interessou-me entender o mundo, a sociedade, o comportamento humano, as questões deixadas pelas gerações anteriores; entender, de modo particular, os dados e os processos sociais que influenciam ou determinam a educação.
Professora primária no final de 48 pelo Instituto de Educação Padre Anchieta (antiga Escola Normal Modelo do Brás), ávida de saber, mas também vaidosa dos êxitos até então conseguidos, comecei os estudos universitários certa de que os venceria com tranqüilidade.
Redigi os primeiros trabalhos acadêmicos, fiz as primeiras provas. Aparentemente tudo ia bem (eu lecionava e estudava) quando me deparei com as notas obtidas em Sociologia I, programa ministrado pelo querido mestre Florestan. A nota média por mim obtida foi 5, um susto e uma frustração, somente metabolizados quando tive coragem de procurar o professor para lhe pedir explicações. Eu estava acostumada a notas bem mais altas até aquela fase de minha vida estudantil. Mas tudo isso foi providencial. O leitor conclua sobre o perfil de Florestan Fernandes após a narrativa que se segue:
- “Sra. Maria Nilde (era assim que os professores nos chamavam, senhores e senhoras), a nota não quer
dizer nada. O que conta é o conhecimento, a atitude de investigação. Vamos reler os seus trabalhos e a
senhora. perceberá o que quero dizer...”.

De fato, Florestan Fernandes teve a paciência heróica de sentar-se ao meu lado, na sala do Departamento,
e comentar todas as anotações que fizera nos meus trabalhos. Página por página, parágrafo por parágrafo.
Levantou inúmeras questões que eu deveria rever e aprofundar. Em meio à conversa, perguntou-me se aceitava o desafio da elaboração intelectual, assim como o escultor burila até o fim sua obra. Confesso que me senti diante de um gigante e ao mesmo tempo de uma figura profundamente humana.

Percebi logo que seria um imenso privilégio tê-lo como professor. Comprometi-me com o desafio e assumi a proposta de ler várias obras, anotar as indagações decorrentes e ter um encontro quinzenal com o professor para avaliar o caminho encetado. Foi assim que descobri as Ciências Sociais, a Sociologia, a Antropologia e a Política, a ponto de desejar reorientar minha opção profissional. Aí também Florestan entrou para me ajudar, para “pensar junto”, como costumava dizer. Refletimos muito sobre a relação educação-sociedade, a necessidade de bons educadores, competentes e comprometidos com a transformação da realidade brasileira.

À distância, com o passar do tempo, concluo que  minha decisão não poderia ser outra - afinal, a tarefa
de formar consciências é fundamental num país de cultura colonial e de educação autoritária. Era, como
até hoje é, necessário que os homens entendam o que é liberdade, e isto se faz processualmente, realizando ações, vivendo experiências e refletindo sobre sua eficácia.

A Universidade de São Paulo de 50 era muito mais elitizada do que hoje. O alunado, em sua maioria, vinha das camadas média alta e alta da sociedade.
Eram jovens que só estudavam, tinham tempo para as coisas da cultura, mas sobretudo eram despertados
para o trabalho científico. Então, fazer ciência era somente na USP. Isto significava status, reconhecimento acadêmico, respeitabilidade profissional.

Este foi um período muito rico para mim. O contato com Florestan Fernandes continuou mesmo depois
de seus programas e persistiu até sua morte; sempre tive a liberdade de procurá-lo para esclarecer dúvidas, solicitar sugestões e críticas para meus trabalhos, partilhar a angústia de jovem educadora frente aos problemas que encontrava na relação ciência/filosofia; ciência/religião; filosofia/sociologia. De todos os encontros saí sempre muito enriquecida e não poucas vezes com muito material para ler. A biblioteca de Florestan tinha uma dimensão pública. Era também de seus alunos e companheiros de trabalho.

Depois de um hiato determinado por penoso problema de saúde e de quatro anos de magistério público no interior do Estado, em Socorro, voltei a encontrar com mais freqüência Florestan Fernandes durante a década de 60. Ele colaborou decisivamente em minha formação e de muitos outros colegas, entre estes, alguns professores que integrariam a equipe do Serviço de Ensino Vocacional do Estado (1961-1969).

Com carinho, muitos de nós lembram a casa da Rua Nebraska, no Brooklin, uma “segunda  universidade”, a excelente acolhida e o cafezinho de dona Míriam.
Tivemos muitos encontros e seminários nos quais se configuravam cada vez mais a necessidade da luta política e da defesa intransigente que fazia e fez até o último momento de vida, da escola pública, estatal, laica e gratuita. Éramos fruto da escola pública, deveríamos ser amplamente seus principais defensores! Sua origem humilde, os sacrifícios da infância e da adolescência, sua consciência de classe, o levaram a uma impressionante fidelidade aos excluídos da sociedade.
Era uma postura contagiante!

Mas a universidade e os grupos politicamente atuantes da década de 60 pagaram um alto preço.
Com o golpe militar de 64, sucederam-se as pressões, as perseguições aos opositores do regime e  efensores
da democracia e da liberdade. Florestan, assim como outros combativos intelectuais e cientistas, foi
aposentado com base no Ato Institucional n° 5, de dezembro de 68. O regime militar, ceifando o trabalho docente e de pesquisa, criou barreiras imensas, quase intransponíveis, para os atingidos e lacunas até hoje não resolvidas na formação de gerações universitárias que se sucederam. A partir de 69, os “aposentados” e os “cassados” não puderam adentrar à universidade pública. Florestan, profundamente abatido por estas circunstâncias, aceitou ministrar alguns cursos no exterior, mas por breve espaço de tempo, pois logo assumiu
a grande tarefa solitária de escrever, produzindo nesse período doze obras sobre o Brasil e a América
Latina, além de numerosos ensaios e artigos.

Por outro lado, o grupo de educadores que liderava o Ensino Público Vocacional em São Paulo também
foi duramente atingido. Estava na coordenação geral deste serviço quando fui aposentada igualmente
com base no Al-5. Com alguns ex-companheiros de serviço público criamos o Renov  (Relações Educacionais e do Trabalho), alternativa que encontramos para, a partir da área privada, continuar formando educadores, jovens de grupos populares e outros. Também Florestan Fernandes esteve presente não somente com sua solidariedade humana e política, mas com o trabalho profissional, ministrando cursos, fazendo
palestras, preparando textos. Até o encerramento do Renov, em 1986, Florestan colaborou negando-se a
receber qualquer pagamento por seus serviços.

Tive ainda a ventura de poder estar ao lado de Florestan Fernandes na PUC de São Paulo e no Instituto Sedes Sapientae, a convite de madre Cristina Sodré Dória, na década de 70. Neste tempo, ministrou inúmeros cursos, orientou teses, mas principalmente colaborou com a palavra e com a produção escrita na formação de uma nova geração de universitários e de trabalhadores que não encontrava nem na universidade nem nos sindicatos oportunidades de formação crítica e de uma arguta análise da conjuntura nacional.No final dos anos 70, veio a Lei de Anistia (ampla, geral e restrita). Muitos professores e pesquisadores voltaram para seus cargos. Florestan se negou a faze-lo, primeiramente, porque a concessão da anistia estava sujeita a “uma certa negociação com o governo do Estado”, mas, também, porque não via sentido em atuar na nova situação. Nesse período, ele assim se expressou:
“Cheguei a pensar que não era reprimido pela ditadura, mas por meus antigos companheiros...”.
Infelizmente, a competição acadêmica e alguns guetos ideológicos trataram de afastá-lo definitivamente.

Também na PUC de São Paulo houve algumas decepções, embora por outras causas. Nos cursos de
pós-graduação, alunos evitavam escolhê-lo para orientador, pois alegavam que ele, além de erudito,
era muito exigente para com a produção intelectual.
Assim, infelizmente, muitos se auto prejudicaram, ignorando que, com tal atitude, pouco mereceriam o título  de mestres ou de doutores.
Socialista por opção, fundado na compreensão do marxismo-leninismo, era ao mesmo tempo cioso de
sua independência e da liberdade de pensar.
Com tal espírito aceitou, em 1986, ser candidato à Câmara Federal pelo Partido dos Trabalhadores,
cumprindo dois mandatos (1987-1994).

Na verdade, seria necessário escrever várias obras para dizer de Florestan Fernandes - sua vida e obra,
seu perfil de cientista, educador, intelectual e militante.
Foi um resistente na luta contra a ditadura militar e o arbítrio, na construção intelectual e cientifica da
Universidade de São Paulo, na defesa da escola pública, na defesa da causa dos trabalhadores, na luta revolucionária por um Brasil genuinamente democrático.

Florestan Fernandes foi sempre coerente na postura pessoal, docente e política, de extraordinária
simplicidade no trato com as pessoas, de muita humildade  intelectual e, sobretudo, de impressionante solidariedade com seus colegas, seus alunos de ontem e de hoje, com todos os que, como ele, foram atingidos pelo regime militar.

Os verdadeiros democratas continuam porém inconformados com o não aproveitamento ou subaproveitamento de nossos melhores cérebros e, porque não dizer, escandalizados com a onda cada vez maior de oportunismo que atingiu cabeças intelectualmente bem formadas, algumas das quais até passaram pelos bancos universitários como discípulos de Florestan.O homem que não teve medo da liberdade assim respondeu aos seus últimos alunos da USP nos idos de 69:

Ter medo é humano. Ceder ao medo é errado. A luta contra a ditadura exige que estejamos em permanente tensão com o nosso medo.
Ele, decisivamente, não teve medo da liberdade!

Maria Nilde Mascellani é professora do Departamento
de Psicologia Social da PUC/SP.
Maio 1996 Revista Adusp

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